Especial
N° Edição: 1727 | 07.Nov.02 - 10:00 | Atualizado em 27.Nov.11
- 12:25
Quem tem fome tem pressa
A frase do sociólogo Betinho é a síntese do apelo
de 54 milhões de brasileiros, quase um terço da população do País, que não têm
comida para pôr no prato
Célia
Chaim
Muitos e muitos deles têm o sobrenome do
presidente, Silva. Maria, João, Rafael, Sebastião, Benedita... A mais conhecida
delas é Bené, a senhora Benedita da Silva, governadora do Rio de Janeiro. “Não
tem coisa mais indigna que a fome”, diz ela com conhecimento de causa. Durante
muito tempo na vida, a ex-favelada Benedita comeu fubá puro no almoço e no
jantar. Só isso. A brava Benedita da Silva superou a miséria e a fome, mas o
fubá puro continua sendo o alimento básico de 54 milhões de brasileiros, quase
um terço do total de habitantes do País, de 175 milhões.
São pessoas que vivem com menos (às vezes muito
menos) de um dólar por dia e colocam o Brasil como um dos países mais desiguais
do mundo: 10% de sua população concentra mais da metade da riqueza. É a maior
de todas as tragédias brasileiras. “Estou seguro de que o combate ao flagelo da
fome é, hoje, o clamor mais forte do conjunto da sociedade, disse Luiz Inácio
Lula da Silva ao anunciar a criação de uma Secretaria de Emergência Social com
verbas e poderes para iniciar já em janeiro a urgentíssima missão de pôr fim à
pior forma de exclusão, a de um prato de comida.
A fome, que faz um copo de água doer quando bate no
estômago vazio, é a grande desgraça da humanidade. Seis milhões de crianças
morrem por desnutrição a cada ano, a maioria nos países em desenvolvimento. As
mais recentes estimativas da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e
Alimentação (FAO) indicam que, por dia, morrem 25 mil pessoas vítimas da fome e
da pobreza. “A tragédia da fome em meio à opulência é dramática na realidade
atual do mundo”, diz o diretor-geral da FAO, Jacques Diouf. Ao apresentar o
estudo “O estado da insegurança alimentícia no mundo em 2002”, Diouf disse que
virtualmente em todos os países há grupos de pessoas que não podem realizar
plenamente o seu potencial humano porque passam fome ou são subnutridas, o que
mina suas forças e paralisa o sistema imunológico.
No Brasil, o
custo para erradicação da indigência corresponde a R$ 1,69 bilhão mensais ou 2%
do PIB, de acordo com o estudo Mapa do Fim da Fome no Brasil, elaborado no
Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, do Rio de Janeiro,
divulgado em julho e baseado em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílio (PNAD), de 96 a 99. O estudo mostra que a aplicação de R$ 1,69 bilhão
por mês significaria uma contribuição mensal de R$ 10,4 por brasileiro, tendo
como base a renda per capita do País, que é de R$ 262. “A idéia desta pesquisa
é mostrar como custa pouco erradicar a pobreza e fornecer dados exatos de
quanto seria preciso para tirar 50 milhões de brasileiros da indigência”,
explicou o economista Marcelo Neri, chefe do Centro. Esse contingente, que
chega perto da população da França e da Inglaterra (60 milhões) e deixa para
trás, com folgada distância, uma Argentina inteira (38 milhões), vive com R$ 80
por mês, dinheiro insuficiente para comprar uma cesta de alimentos que cubra as
necessidades calóricas básicas dos indivíduos.
Os Estados
nordestinos são os que apresentam maior índice de pobreza do País. Todos, à
exceção do Rio Grande do Norte, têm mais de 50% de sua população abaixo da
linha de pobreza. O Maranhão é o Estado que apresenta a pior situação: mais de
63% de sua população vive abaixo dessa linha. De acordo com a pesquisa,
precisariam ser investidos R$ 143 milhões por mês no Maranhão para se reverter
esse quadro. O Piauí é o segundo Estado com maior índice de pobreza do País
(61,7%), seguido do Ceará (55,7%), Alagoas (55,4%), Bahia (54,8%), Tocantins (21,27%),
Pernambuco (50,9%), Paraíba (50,2%), Sergipe (50,14%) e Rio Grande do Norte
(46,93%).
A América Latina inteira empobreceu. Dados da
Comissão Econômica para o Desenvolvimento Econômico da América Latina e Caribe
(Cepal) mostram que os países latino-americanos têm hoje mais 20 milhões de
pobres do que há cinco anos, em consequência da retração de suas economias.
Afetada por uma contração que começou em 1997, como reflexo da crise asiática,
a região latino-americana entrou numa fase de crescimento lento e recessão,
enquanto a proporção de pobres passou de 43% a 44% do total da população. “Isto
significa que, ao longo destes anos, foram acrescentados cerca de 20 milhões de
pessoas à população pobre da América Latina”, disse José Antonio Ocampo, secretário
executivo da instituição, em 24 de outubro, durante a cerimônia de comemoração
do Dia das Nações Unidas. Segundo as mais recentes estimativas da Cepal, a
região terá este ano uma queda de 0,1% em seu Produto Interno Bruto (PIB), com
reduções mais acentuadas nas economias de Argentina (-10%), Venezuela (-3%) e
Uruguai (-4%), e um menor crescimento no Chile (inferior a 2,5%) e Brasil
(1,8%).
Fome chama
pobreza e vice-versa. Inúmeros estudos confirmam que a fome impacta em cheio a
condição da pessoa pobre para desenvolver suas habilidades e reduz sua
produtividade no trabalho. Nas crianças, afeta o desenvolvimento físico e
mental, reduzindo drasticamente sua capacidade de aprendizado. A deficiência de
iodo, uma das principais causas do retardo mental, é uma ameaça para 1,5 bilhão
de pessoas no mundo. A carência de ferro reduz a produtividade dos
trabalhadores braçais em torno de 17%. Além disso, eles são frequentemente
incapazes de trabalhar o mesmo número de horas que os bem nutridos porque ficam
doentes mais frequentemente. A anemia, sozinha, é capaz de reduzir o Produto
Interno Bruto de um país de 0,5% a 2%. Em Bangladesh, por exemplo, o impacto em
2001 foi de 2%, segundo dados do Banco Mundial; na Índia chegou a 1,3%.
Robert Fogel, Prêmio Nobel de Economia em 1993, não
tem dúvidas de que “pessoas com fome não conseguem sair da pobreza”. Ele conta
que 20% da população da Inglaterra e da França foi efetivamente excluída da
força de trabalho em 1790, por causa da subnutrição. O avanço do nível de
nutrição, segundo Fogel, é responsável pela metade do crescimento econômico dos
dois países entre 1790 e 1880. “Como vários países em desenvolvimento são
atualmente tão pobres como eram França e Inglaterra em 1790, a eliminação da
fome hoje pode ter o mesmo impacto no desenvolvimento desses países”, escreveu
Fogel no estudo da FAO.”
Entre 1998 e
2002, o documento aponta a existência de 840 milhões de pessoas desnutridas,
das quais 799 milhões vivem em países em desenvolvimento, 30 milhões nos países
em transição e 11 milhões nos países industrializados. Em um nível ligeiramente
superior ao da penúria encontram-se mais de dois bilhões de pessoas carentes,
chamadas de “micronutrientes”. São pessoas cujas dietas carecem de vitaminas e
minerais, sobretudo de vitaminas A e C, e de ferro, iodo e zinco, essenciais
para o desenvolvimento e o crescimento dos seres humanos.
O estudo monitora o progresso feito anualmente
contra a fome e a má nutrição. Nesta terceira edição verifica-se que houve
progressos, mas não com a rapidez exigida pela causa. Nos períodos de 1990-1992
e 1998-2000, o número de pessoas famintas diminuiu apenas 2,5 milhões por ano,
e isso graças à média ponderada entre os bons resultados na China (menos 74
milhões), Vietnã, Tailândia, Nigéria, Gana e Peru, onde
a má nutrição retrocedeu consideravelmente (atingindo mais de três milhões de pessoas), e o desastre que ocorre em vários países onde
a fome aumentou, sobretudo na África subsaariana (a Somália detém o triste recorde de subnutrição do planeta, que atinge 75% de sua população). Na verdade, a luta contra a fome sofreu um retrocesso no mundo nos últimos anos, o que torna praticamente impossível atingir o objetivo fixado em 1996 durante a Cúpula de Alimentação de reduzir à metade o número de pessoas subnutridas até 2015. Para alcançar essa meta seria necessário que o número de pessoas desnutridas diminuísse 20 milhões por ano, o que está longe de acontecer. Durante a última década, o total de subnutridos nos países em desenvolvimento caiu aproximadamente 40 milhões, numa média modesta de seis milhões
por ano, dois milhões a menos que a média registrada pela FAO em 1999. Consequentemente, a redução anual agora necessária para
atingir a meta de 2015 passou de 20 milhões para 22 milhões de pessoas. A diferença entre a redução realizada e a redução necessária vem aumentando, o que permite concluir que, nesse compasso, levaria pelo menos 60 anos para atingir a meta definida em 1996.
a má nutrição retrocedeu consideravelmente (atingindo mais de três milhões de pessoas), e o desastre que ocorre em vários países onde
a fome aumentou, sobretudo na África subsaariana (a Somália detém o triste recorde de subnutrição do planeta, que atinge 75% de sua população). Na verdade, a luta contra a fome sofreu um retrocesso no mundo nos últimos anos, o que torna praticamente impossível atingir o objetivo fixado em 1996 durante a Cúpula de Alimentação de reduzir à metade o número de pessoas subnutridas até 2015. Para alcançar essa meta seria necessário que o número de pessoas desnutridas diminuísse 20 milhões por ano, o que está longe de acontecer. Durante a última década, o total de subnutridos nos países em desenvolvimento caiu aproximadamente 40 milhões, numa média modesta de seis milhões
por ano, dois milhões a menos que a média registrada pela FAO em 1999. Consequentemente, a redução anual agora necessária para
atingir a meta de 2015 passou de 20 milhões para 22 milhões de pessoas. A diferença entre a redução realizada e a redução necessária vem aumentando, o que permite concluir que, nesse compasso, levaria pelo menos 60 anos para atingir a meta definida em 1996.
Aqui ou na Somália, o combate radical à fome é o
primeiro e vital passo para erradicar a pobreza. Isso foi reconhecido até pelos
integrantes do G8, o grupo dos países mais ricos e poderosos do mundo, durante
a reunião do ano passado, em Gênova, na Itália, de onde saiu um comunicado
final que dizia que “a estratégia principal para a redução da pobreza consiste
no acesso ao alimento e no desenvolvimento rural”.
O que se questiona é por que eles, os países ricos
e bem nutridos, contemplam placidamente a morte de 25 mil famintos por dia. No
ano, o número, só de crianças com menos de cinco anos, passa de seis milhões. É
assustador: a cada 3,6 segundos alguém morre de fome no mundo. “Quem tem fome
tem pressa”, dizia Betinho, irmão do cartunista Henfil, o sociólogo militante
Herbert de Souza, que, entre outras coisas, criou a organização-não governamental
Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida, em 1994, no Rio de
Janeiro. Três anos depois, no dia 9 de agosto de 1997, ele morreu aos 61 anos
em sua casa, no bairro de Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro. Deixou uma
esplêndida história de heroísmo, livros, muitos amigos, a bandeira hasteada
contra a fome e a frase que agora ganha o Palácio do Planalto.
Fórum relembra frase de
Betinho: quem tem fome tem pressa
[24/3/2004] 25 de março de 2004 - "Quem
tem fome tem pressa." A frase criada por Betinho na década de 1990 foi
relembrada hoje pelos palestrantes do workshop Agronegócio e Desenvolvimento
Local, um dos temas escolhidos para o Fórum Permanente de Agronegócios,
realizado nesta quinta-feira, no auditório da Biblioteca Central da Unicamp.
O
primeiro apresentador a relembrar as palavras de Betinho foi o secretário
nacional de Segurança Alimentar e Nutricional do Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome, José Giaccomo Baccarin. Ele afirmou que a ação social
tem preocupação forte com o índice de 10 milhões de famílias brasileiras abaixo
da linha da pobreza e enfatizou que a redução do índice só poderá ser garantida
se houver ação integrada de diferentes áreas do governo.
Baccarin
falou sobre a criação de 40 conselhos estaduais (Consads) para formulação de
políticas de atribuição. Uma das medidas emergenciais contra o atual quadro
instauradas pelo governo federal é a política de suplementação de renda,
responsável pelo atendimento a 3,6 milhões de famílias. A intenção é chegar a 4,5
milhões. "Em alguns casos, a atribuição é feita em cestas de alimentos. Em
outros, pelo projeto bolsa-família, com desconto no sistema bancário.".
Uma parcela muito pequena da sociedade consegue garantir a variedade de
alimentos em suas refeições. E são essas, de acordo com a especialista, que,
além de não ter problemas com desnutrição, estão menos suscetíveis à obesidade.
A
iniciativa, entre outras, faz parte do projeto de desenvolvimento de políticas
públicas para garantir à população o direito de se alimentar adequadamente.
"Existem pessoas que comem bastante, mas sem dignidade. Buscam resto de
alimentos para se alimentar", enfatizou. Outra questão a ser discutida com
urgência entre as que estão associadas al alto índice da pobreza no País é a
geração de empregos e rendas. De acordo com o secretário, o Brasil não tem
deficiência de alimento. "Produzimos muito e barato", mas a maior
parte da população está suscetível à insegurança alimentar, devido à má
distribuição de renda.
O projeto
resumido por Baccarin prevê ações locais, focadas no incentivo à agricultura
familiar. Em 2003, em apenas seis meses, foi aprovada e revogada uma lei que
permite a aquisição de alimentos produzidos por pequenos agricultores. Der 17,3
milhões de brasileiros ocupados na agricultura, 12 milhões trabalham em regime
familiar, revelou o representante do governo. A aquisição de produtos
produzidos pelas famílias pode favorecer o aumento da produção e a geração de
emprego e renda.
Linhas de
crédito criadas pelo governo federal, como a Pronaf, são a saída para que
´pequenos agricultores aumentem sua produção. Paralelo a isso, o Ministério da
Agricultura e as secretarias incentivam a compra desses produtos por parte de
empresas públicas e escolas. Entre 2003 e 2004, foram liberados 5,3 bilhões
para financiamento a essa categoria.
O projeto
do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome está aliado a alguns
projetos desenvolvidos pelo Ministério da Saúde, como a Política Nacional de
Alimentação e Nutrição, apresentada por Marília Mendonça Leão durante a mesa
redonda. Coordenadora da equipe de investigação e monitoramento em alimentação
e nutrição do Ministério da Saúde, ela declarou que, apesar de os dados
comprovarem que a desnutrição infantil e de adultos estão em declínio, o índice
de mortalidade infantil causada pela fome ainda é "a maior vergonha
nacional".
Outra
questão que necessita de maior atenção de estudiosos e responsáveis pela saúde
pública, segundo Marília, é o combate à obesidade. Os quadros demonstrativos
remetem à realidade do baixo padrão de consumo brasileiro em termos de
qualidade de alimentação. As famílias de baixa renda acabam se alimentado mais
de tubérculos e grãos, ao passo que as famílias de renda média dão prioridade à
alimentação da criança.
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